ESCRITORES TRABALHANDO – FICAR P. DA VIDA É UMA FORMA DE ILUMINAÇÃO

Texto de meu amigo no Facebook Marco Antônio Coutinho – excelente
— Rapaz!!!! Você me fez ver a luz!!!! — escreveu-me Renata — definitivamente salvou minha encarnação!
Minha amiga comemorava uma afirmação que lhe fiz, por email, ao dizer que “ficar p. da vida é uma forma de iluminação”. — Este aforismo pode valer uma tese de — quem sabe — pós-doutorado! — arrematou ela.
Eu havia tido esse insight ao tomar um susto com nada menos do que um frágil e inocente jasmim. Apenas uma delicada florzinha… Dá pra entender um negócio desses? Então explico.
“Iracundo” desde criancinha, só há alguns poucos anos me toquei de que precisava ser mais cordato, mais ‘zen’, mais tolerante. E só também há alguns poucos anos foi que me dei conta de que ‘realmente poderia fazer isto’. Não, eu não pretendia transformar o dragão em uma espécie de ‘Marco Antonio de Calcutá’. Isso já seria presunção demais. Seria a candidatura a uma santidade que não me apetece e, claro, não está ao meu alcance, mesmo que me apetecesse. No máximo, eu conseguiria me tornar alguém ‘bonzinho’, a pior espécie de gente que existe, depois dos ditadores, dos intelectuais e dos políticos profissionais.
O fato é que, até esse momento de reflexão sobre o meu temperamento, a ira tinha sido um dos meus pecados prediletos, ou, pelo menos, um dos mais praticados. Houve mesmo uma época em que alguns de meus amigos mais chegados já haviam identificado ‘o bico do Marquinho’. Um sinal que eu fazia com a boca, sem o perceber, anunciando que iria espalhar a brasa. Mais ou menos como, segundo se diz, os leões contraem a ponta da cauda três ou quatro vezes, antes de finalmente atacar. Pra você ver… A gente se torna previsível e nem sabe…
Então eu achava que havia, finalmente, amadurecido um pouco. Longos anos de reflexão, de meditação, de muita crítica e de alguma autocrítica, e uma pitadinha de artes marciais fizeram de mim um cara menos irado, e isto me fez um bem que você não imagina. Não só à mente e à química do corpo (que, por um tempo, ficaram ocupadas apenas com a ‘Orquídea Negra’), como também ao ego. “O Marco mudou tanto”, comentava-se à boca pequena, e, claro, aquilo me afagava por dentro, e me fazia acreditar novamente nessa coisa de evolução pessoal.
A questão é que, paralelamente a essa minha conquista, eu ia ficando cada vez mais atencioso em relação aos outros. Tornei-me mesmo, por assim dizer, ‘protetor’, meio paternal com as pessoas. Os amigos, os colegas de trabalho e estudos, a família, os companheiros de ativismo. Mas, principalmente, em relação à ela que, no momento, estivesse ditando o ritmo de meu coração. Só aí entendi, na prática, o que haviam me transmitido os meus antigos, com seus ensinamentos, e me sugeria o boxe de Ving Tsun, que insistia que ‘cuidar dos mais velhos, cuidar dos mais novos, cuidar do mestre e cuidar de si mesmo’ era uma forma de se estar mais atento e consciente.
Mas há poucos dias, ao lidar com uma florzinha delicada, que me inspirava os mais dedicados cuidados (o jardineiro é negligente), surpreendi-me ao espetar o dedo num espinho imprevisto. Bem, ‘imprevisto’ é o modo de dizer. Eu já me havia espetado nela, algumas vezes, mas em geral aceitava aquilo. Afinal, uma flor tão frágil precisa ter as suas defesas, não é? Não conseguia me aborrecer com ela, e aquelas espetadelas desenhavam pra mim, com mais precisão, a sua fragilidade. No entanto, naquele dia, inadvertidamente, toquei um espinho secreto que eu não conhecia. Cara, aquilo doeu! E não sei se por trazer em si algum tipo de peçonha, mesmo leve, ou por ser um espinho de emergência, o fato é que, pela primeira vez, uma espetadela daquelas me trazia uma sensação diferente, que a princípio não consegui identificar. Mas tão familiar ela era, que eu logo percebi: estava muito p. da vida! Furioso!
No entanto, longe de me frustrar, de me fazer penar o fracasso de não ter resistido à ira que eu pensava haver, pelo menos, administrado ao longo dos últimos anos, aquilo me soou como uma espécie de iluminação. Isso mesmo: iluminação, ‘samadhi, satori’. De certa forma, parafraseando Paulo de Tarso, foi como se ‘escamas caíssem de meus olhos’, e eu pudesse ver com mais clareza. Será que, até aquele momento, eu estivera me transformando num… ‘bonzinho’? Não. Nem a ira voltou soberana, como antes. Apenas saí dali meio transtornado. Mas ao virar a esquina, o dragão assumiu a sua vocação verdadeira, alçou asas e … voou, claro!
A florzinha ficou lá. Linda, frágil, com seus espinhos e seu duvidoso jardineiro. Do alto, eu não a abandonei… eu acho… Sem planos e sem estratégias, apenas me coloco fora do alcance de meus próprios exageros. E feliz com um êxtase que eu jamais imaginara sentir antes: ficar ‘p. da vida’ é, pelo menos às vezes, uma forma de iluminação.
Renata, quando é que você faz o pós-doutorado?
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In: “Como se ouvisse um piano”, Gnosis Editorial
Imagem: o autor e RENATA!… (Renata Fontes Monteiro)
que aniversaria hoje

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